Para chegar em Triunfo, no Sertão do Pajeú, você deve atravessar um portal. Então tem acesso a uma estrada que serpenteia a Serra da Baixa Verde até chegar à cidade, que fica lá no alto. À medida que a estrada avança, parece que se abre um portal para o fantástico, com seus vales e seus caminhos de pedras. “É nossa Oz!”, Paulo disse. E eu concordo com ele.
O Sertão do Pajeú desafia o pensamento redutivo de sertão seco. Tanto que a primeira parada da Tropa é no Quilombo Águas Claras, que tem esse nome por causa da fonte perene que atravessa a comunidade a partir da Cacimba do Adriano, como é conhecida.
A comunidade tem atualmente 51 moradores. Mas nos dias de reunião da Associação de Agricultores e Agricultoras do Sítio das Águas Claras chega a mais de 100 pessoas. A adesão é tanta que as associadas decidiram restringir a entrada de novos associados por um tempo.
Dona Jandira me falou que a associação é a mãe do Quilombo de Águas Claras. Só depois da sua fundação é que veio o reconhecimento como quilombo. Dona Bilu, uma das fundadoras, me contou que teve a ideia em uma manhã catando andu. Não era possível que a comunidade seguisse tão abandonada. Ela propôs à companheira que a ajudava na tarefa a criação de uma associação de agricultores. Não sabiam muito bem por onde começar, mas sabiam que precisavam de uma sede onde pudessem fazer os encontros. Com ousadia, pediu ao seu marido que comprasse material de construção fiado, confiando na articulação dela e das companheiras para arrecadar dinheiro. Assim ele fez, assim elas fizeram.
A associação teve início em 2003. Mas elas e eles não se sabiam quilombolas ainda. Conversando com pessoas do sindicato de agricultores de Triunfo é que atinaram para as origens de sua comunidade. A partir daí se iniciou um longo trabalho de pesquisa e registros de depoimentos que contassem dos primeiros moradores, das fazendas de onde vinham, dos antepassados escravizados que encontraram naquele território sua autonomia e liberdade.
Dona Bilu relata que muitos moradores tinham medo ou vergonha de falar, então o papel dos mais jovens e da associação foi fundamental. Ela diz que o objetivo da criação da associação era trazer melhorias para a comunidade, tais como acesso a vacinas, saneamento básico. Mas que o primeiro impacto foi na autoconfiança: “Eu, as outras associadas, a gente não tinha coragem de falar. Se chegava alguém de fora, elas baixavam a cabeça, não sabiam o que dizer. O reconhecimento trouxe respeito das pessoas. Onde a gente chega e diz que é quilombola, é recebido diferente”.
A comunidade deu entrada no processo de reconhecimento em 2003, mas a conclusão só aconteceu em 2008. Vendo minha expressão surpresa, Dona Bilu completou “E foi rápido, viu?”
No Brasil esse processo é lento, burocrático e tem várias etapas. Segundo a Agência Brasil, a Fundação Cultural Palmares é a responsável pelo processo de reconhecimento. Já o Incra inicia o procedimento de certificação. Antes de ser titulada, a terra é submetida a vários estudos para levantar informações históricas, socioeconômicas, geográficas, antropológicas, fundiárias, ecológicas, entre outras. A partir do resultado da avaliação, são emitidos relatórios técnicos e só então as terras ficam aptas para seguir adiante na etapa de titulação, que só ocorre depois da desocupação da área por pessoas não quilombolas. O que resulta disso é que, no Brasil, menos de 7% das áreas quilombolas são tituladas.
No Quilombo Águas Claras o que se destaca é a força feminina. Elas ergueram a associação, conseguiram a titulação quilombola, se organizam em diversas ações para manter a cultura local viva: o Coco Tradição Quilombola de Águas Claras, o projeto Mestras Cozinheiras, e a tradicional Festa da Consciência Negra, que se encaminha para a 15ª edição.
Quando as meninas e meninos da Tropa do Balacobaco chegaram para contar e ouvir histórias, Seu Anísio já estava na sua cadeira de balanço, no terreiro de casa. Quando o encontro acaba, ele segue sentado, contemplando o cair da tarde. Seu Anízio tem 96 anos, é o mais velho da comunidade. Como ouve pouco, observa muito. E ensina a olhar o tempo.
A segunda parada é na feira livre de Triunfo, que acontece aos sábados na rua lateral da imponente Igreja Matriz da cidade. A Tropa começa a intervenção com um Samba de Coco, uma chegança bonita que vai abrindo caminhos e sorrisos, preparando o terreno para a partilha. A feira é um espaço cênico por excelência, no qual, depois que se ganha confiança, os jogos vão se estabelecendo na maior naturalidade. “Eu tenho uma história pra contar!” Grita um senhor, antes de compartilhar versos. Da janela da sua casa, uma mulher conta histórias ao escutator; Penso que é possível que aquela senhora nunca tenha ido ao teatro, aquele outro teatro, sisudo, de portas pesadas, cortinas e luzes. Mas fez teatro ali, no portal da sua casa.
Acredito demais no Teatro de pé no chão. Em pé no beiral da casa, na poeira dos terreiros. Porque as narrativas são memória e são impulso para frente. É bonito pensar que a virada da vida do Quilombo Águas Claras se deu pelas histórias coletadas como prova da sua existência. Que a feira se vale da oralidade para criar cumplicidades. E que a Tropa do Balacobaco se engrandece nessas partilhas.
Caroline Arcoverde