TODO MUNDO É PESCADOR
Sete horas e quase 500 kms separam Arcoverde de Petrolina. Uma cidade abre e a outra fecha o sertão pernambucano. Antes de adentrar Petrolina, é possível avistar o imponente rio São Francisco. Tiago, integrante da Tropa, comenta em um tom de voz sarcástico: “Nooossa, olha esse tanto de água...NO MEIO DO SERTÃO”. Todos riram.
O comentário, em tom de deboche, faz jus aos estereótipos arraigados ao imaginário brasileiro, que faz com que o sertão nordestino seja visto apenas como seca e pobreza. Do real ao imaginário, do semi-árido às representações preconceituosas dos sertanejos e sertanejas: o Brazil não conhece o Brasil.
O Rio São Francisco tem, aproximadamente, 2.700 quilômetros, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ocupando cerca de 8% do território nacional. Seu curso percorre os estados de Minas Gerais, Goiás e o Distrito Federal, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas, em 507 municípios. Seu valor econômico, social e cultural é imensurável.
NENHUM HOMEM É UMA ILHA
Nossa primeira parada foi a Ilha do Massangano, em Petrolina. Lá, nosso ponto de apoio foi a casa de Francisco Chagas Sales, o Chagas, figura marcante e importante para a cultura da Ilha e de Petrolina. Sua casa é repleta de artesanato, cerâmicas, e móveis que guardam um pouco da história das artes manuais brasileiras.
Francisco Chagas Sales
A contação de histórias aconteceu na varanda de uma lanchonete em frente à escola municipal, com a presença de diversas crianças e alguns adultos. Após a apresentação, os alunos e alunas voltaram para a sala de aula, e os integrantes foram em busca daquilo que é o propósito do projeto: as histórias e lendas da região.
Os atores e atrizes da Tropa do Balacobaco adentraram pelas ruas e casas da Ilha. Em baixo de uma árvore frondosa, estavam sentadas duas senhoras: Célia e Joana. Célia tem 54 anos, 50 deles vividos na Ilha de Massangano. Ela nasceu no interior da Bahia, mas era criança quando a família se mudou para a Ilha. “(na ilha) Não tinha luz, não tinha internet, a gente se falava por carta, mas aqui ninguém tinha endereço que chegasse carta, tinha que botar o endereço de algum parente em Petrolina e ir buscar. Hoje tem luz, tem água na torneira, tem internet, tem tudo”, conta. Questiono sobre como essas conquistas chegaram, ela afirmou que “tudo o que a gente conseguiu aqui foi através das associações”. Segundo Célia, são 3 as associações atuantes na Ilha: comunitária, cultural e de agricultores e agricultoras, e que nelas estão as lideranças comunitárias do território.
SABEDORIAS DE UMA MATRIARCA
Tivemos o privilégio de conversar com uma das matriarcas da Ilha de Massangano. Dona Amélia, como é conhecida, é Amélia Oliveira da Silva, a mais velha do tradicional Samba do Véio, ritmo centenário nascido e preservado na Ilha, tendo seu pai como um dos precursores.
Dona Amélia tem 82 anos, e passou por uma cirurgia de glaucoma, o que a deixou com baixa visão. Além disso, devido à idade, seus movimentos estão um pouco lentos e precisa de auxílio para ir de um local para o outro. Tomávamos um café em frente à sua casa, na presença de outras mulheres. Elas contavam algumas histórias sobre a Ilha, o Samba de Véio e sobre a própria Dona Amélia. Eva, que é uma das integrantes do Samba de Véio, brinca dizendo que “aqui o povo mente muito (todos riem). Quando a gente era novo, na lua cheia, ficava todo mundo espalhado nas esteiras, contando histórias”.
Histórias de pescador, como alguns que dormiam e acordavam só em Itamotinga, ou do Nego D´água, que chegava com a mareta ¹ no barco, caso o pescador não levasse fumo para ele. Perguntei a Dona Amélia, se era costume as mulheres serem pescadoras, ou se era uma função reservada aos homens, no qual ela me respondeu: “Minha filha, todo mundo é pescador, o peixe é que deixa de vir”.
O SAL DA TERRA
Após atravessarmos o rio, de volta à Petrolina, seguimos viagem para Lagoa Grande, à uma hora de distância. Nosso destino era o Quilombo Lambedor. O Quilombo Lambedor foi certificado como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares no ano de 2011. Tal qual a divisão Juazeiro X Petrolina feita pelo Velho Chico, o Lambedor é dividido pelo Riacho. O Lambedor 1 pertence ao município de Lagoa Grande e o Lambedor 2, é pertencente ao município de Petrolina. O Riacho chama Riacho mesmo, e nasce no Piauí.
“Tem cabimento chegar um pipa num lado e no outro o caba morrer de sede?”, reclama Maura, ao contar sobre os impactos dessa diferenciação. Essa divisão política serve apenas às disputas de poder dos municípios, já que para os habitantes, não existe separação no território.
Nossa apresentação e escuta aconteceu na varanda da igreja, que faz as vezes de salão comunitário da comunidade. Lá estavam presentes cerca de 50 pessoas, muitas delas crianças. Lá pudemos conversar com alguns dos moradores mais antigos do Quilombo. Ao ser questionado sobre lendas e histórias da tradição, Francisco cita o nome de Tia Judita, uma das matriarcas do Lambedor, já falecida. Segundo ele, Judita “contava, mas (a gente) não tinha ligança” , ou seja, as crianças que ouviam não guardavam as histórias na memória, não ligavam para aquilo que ela contava.
Maura contou também a origem do nome Lambedor: “lá na baixa de Tonho era cheio de vagens, e os bichos viajavam várias léguas. Cavalo, boi, cabra, vinham tudo lamber, por causa que acumulava sal na terra”. Novinha completa, “ali na baixa (aponta para o barreiro, em frente) , à noite, às vezes, chega a brilhar. É o sal”
O caruá já foi a maior fonte de renda do território, nos anos 70. Havia duas usinas de caruá, no Poço de Angico e em Santa Marta, e muitos dos moradores iam retirar caruá no mato e levavam pras usinas. Lá o caruá viraria fibra, podendo virar corda, cestos, tapetes.
“Veio um pessoal visitar que não sabia o que era caruá. Eu fui buscar ali pra eles verem e resolvi plantar por ali (aponta perto de uma pedra, do outro lado onde estamos sentados). Plantei de dia, à tarde deu uma chuva e pegou”, relatou Francisco.
Seja pela chuva que faz brotar o caruá, seja pelo barreiro que brilha à luz da lua, seja pelo Rio que inunda as paisagens com sua abundância e imponência, o sertão do São Francisco parece mesmo ser banhado de águas mágicas.
¹ mareta: onda pequena, onda de rio
Jéssika Betânia