A brincadeira é uma escola
Ao pensar em Bodocó, localizada no Sertão do Araripe, impossível não lembrar dos versos iniciais cantados na música Pau de Arara de Luiz Gonzaga, “Quando eu vim do sertão, seu moço, do meu Bodocó”. Ao chegar em Várzea do Meio, bairro do município e ouvir a história da formação da comunidade, a canção parece ganhar mais sentido. Assim como a narrativa sertaneja cantada pelo Rei do Baião, os fundadores da Várzea que chegavam na região “só trazia a coragem e a cara”.
A brincadeira do Reisado chegou junto com os primeiros moradores, em meados dos anos 1930. Já são quase 90 anos de tradição passada de geração em geração. “Era uma cultura muito própria onde só os homens brincavam: só homens vestiam, só homens cantavam, e eles só saíam no período de reis, no começo de janeiro”, explica Adriano, supervisor de cultura do SESC Bodocó. “Com o passar do tempo a vila cresceu, virou bairro e a comunidade de Bodocó começou a ver a brincadeira deles. Mas eles não sentiam a vontade de brincar fora daqui, eles só brincavam aqui dentro, pela tradição.”
Há cerca de cinco anos o SESC realizou um intercâmbio cultural com um reisado do Ceará, que também tem a tradição de reisado de couro e caretas. Diante desse encontro, algumas percepções despertaram, e abriram-se então à participação das mulheres no grupo, integrando o coro. As figuras, porém, ainda são todos homens. Os caretas usam máscara de couro e gibão, próprio dos vaqueiros e fazem as vezes de mestre-sala para os brinquedos. Um brinquedo nunca fica só, ele sempre interage com os caretas.
Luana Hora é a sexta geração dessa tradição e junto com outras mulheres, canta e ajuda a manter a tradição viva. “No Dia de Reis (dia 6 de janeiro) a gente faz uma procissão. Tem umas quinze casas que a gente passa, de porta em porta. A gente canta uma música na porta, começa às 6 horas da noite, vai terminar umas 9h e meia, e toda casa recebe os caretas com comes e bebes.”, descreve.
Ela conta que durante o cortejo, eles dançam, brincam e fazem orações juntos com os moradores das casas. E que a cada ano que passa, aumenta a devoção e o número de casas para visitar. “Vai chegar um dia que a gente não vai conseguir fazer (todas) as promessas, porque é muita gente, a gente termina muito tarde”.
A tradição da brincadeira do Reisado de Couro de Várzea do Meio é a seguinte : se alguém fazia uma promessa e o pedido se realizava, a pessoa tinha que pagar: se ela tinha mais dinheiro, ela dava um bode, se tivesse menos dinheiro, era uma galinha. E então o grupo inteiro ia até o sitio ou casa da pessoa, tocando, cantando e brincando. Lá, comia, bebia e voltava com a carne do bicho para dividir em toda comunidade. Hoje, o Reisado de Couros é formado por cerca de 15 pessoas, entre os homens mais velhos, mulheres e crianças, que seguem renovando a tradição.
Quem sabe faz a hora
O processo de marginalização da comunidade de Várzea do Meio diante de Bodocó é algo que se reflete na formação do território. “Ainda hoje quando eles precisam de algo do centro, eles dizem ‘eu vou pra Bodocó’. É como se aqui não fosse Bodocó”, relata Adriano. “Eles nunca andavam sozinhos, sempre iam em grupo, sempre tinha 3, 4. Eles eram tachados de índios, de uma forma pejorativa.” Questiono se há de fato uma origem indígena, já que houve uma migração, e que não há registros suficientes da mesma. “Se há uma origem indígena, eles fizeram questão de apagar”, desabafa.
Comum à toda formação das identidades indígenas no Brasil, “esquecer” a sua história e origem foi uma estratégia de sobrevivência para evitar preconceitos e perseguições. O que se conta é que os fundadores dessa comunidade eram retirantes, vindos das bandas do Pajéu. Mestre Salvador, integrante do Reisado diz que “Em Bodocó, todo mundo vê a gente como Aldeia”.
A tradição católica é muito forte na comunidade. São diversas igrejas espalhadas no bairro. A capela principal é onde está a imagem mais importante para eles: o Coração de Maria. A imagem está presente desde antes da fundação da comunidade, desde o tempo em que os primeiros moradores ainda eram retirantes. “ Quem pegou essa santa foi a filha de um dos nossos fundadores. Eles andavam, não tinha lugar certo pra ficar, passava 8 meses numa cidade e ela sempre lavando a santa com ela, levando a imagem amarrada num pano dentro dos caçuá¹ dos burros”, relata Luana. “Teve um tempo que deu uma peste aqui e ela fez a promessa que se a peste acabasse ela rezaria 31 dias de maio, independente de onde ela estava. Embaixo de árvore, onde tivesse, ela tirava a imagem, que é essa (aponta para a imagem em destaque no altar da igreja). E até hoje a gente celebra, 31 noites de novena. Geralmente é 9 dias, né? A gente é o mês todinho”, completa.
Deus não dá o boi maior do que pode carregar
Cleuton é um dos mestres do Reisado. Sua idade rivaliza com a sua disposição, digna de um menino. Ele produz muitos dos brinquedos e também é miolo² de alguns. “Na nossa brincadeira tem umas dez figuras e o principal é o boi, ele é muito enorme, é quase dessa altura (mostra uma medida que é quase o próprio tamanho) ele é todo feito de ferro, o chifre desse tamanho (mede novamente com as mãos cerca de 1 metro), só a cabeça dele pesa uns 10 kg, eu acho”.
Além do boi, o Reisado de Couros conta com alguns bichos como bode, burrinha, pavão e também personagens variados, que encontram semelhanças em outros folguedos do nordeste como a Cabeçuda, a Mãe Véia, o Pai Tomé, o Maestro ou Capitão, entre outros. “Nós fomos uma vez numa festa folclórica em Barbalha (município do Ceará), passamos o mês todinho lá. Nós não fomos representar Bodocó, nem a Várzea do Meio: nós fomos representar Pernambuco. Lá tinha Rei de Couro, Rei de Baile, Bumba-meu-boi, Boi Bumbá, Maracatu… e eu passava o dia todo com esse boi na cabeça”,
Após a apresentação da Tropa, enquanto os integrantes ouviam histórias na calçada, Seu Cleuton levou Danny, integrante do grupo, e eu, para conhecer Dona Terezinha, sua mãe. Ela é considerada a historiadora da comunidade, a pessoa que guardou a memória de seu povo, e repassou as lendas, histórias e causos da região para todos que quisessem ouvi-la. “Ela é a nossa Abelha-rainha”, proclama emocionado.
Hoje, com Alzheimer avançado, Dona Terezinha não se comunica mais com palavras e passa os dias numa poltrona na frente da TV, segurando uma boneca, que segundo os parentes que cuidam dela, trata como sua filha. Eles contam resumidamente para nós a sua grandeza e importância para a comunidade. Apesar de não ouvirmos sua voz, percebemos em seu rosto um sorriso carregado de brio, que parece transmitir o orgulho de ser quem é e ter cumprido sua missão. Entendo, então, que nem toda história precisa ser falada e ouvida. Porque ali, naquele instante, os olhos brilhantes de Terezinha parecem nos contar todos os segredos do mundo.
¹ caçuá - cesto grande e comprido de vime, cipó ou bambu, sem tampa e com alças para usar no transporte de gêneros diversos em animais de carga.
² miolo - pessoa responsável por dar vida ao brinquedo, fazendo o boi "dançar" diante do público. O miolo atua de forma invisível, permanecendo escondido embaixo do boi durante toda a apresentação
Jéssika Betânia