TOCAR O CÉU SEM TIRAR OS PÉS DA TERRA
“Nós somos índios”.
Bia Pankararu assentou essas palavras na varanda de sua casa, no sábado (20), após a nossa apresentação no terreiro de sua avó, na Aldeia Agreste, Território Pankararu. A Terra Indígena Pankararu, homologada em 1987, está localizada entre os atuais municípios de Petrolândia, Itaparica e Tacaratu, no sertão pernambucano, próximo ao rio São Francisco. Pouco antes dessa frase, ela desenhava com palavras, a geografia afetiva do território. Explicava sobre como algumas espécies de árvores só nasciam nas bordas da aldeia, outras, só se achavam no meio da mata, outras ainda, nessa aldeia mas não naquela.
Eu e mais alguns integrantes da Tropa, ouvíamos atentos. “Que coisa linda, Bia!”, exclamei. Nos encantamos com esse olhar gentil, o mapeamento a partir da observação das espécies vivas e não-humanas. E com sua frase, ela me lembra de que não daria pra ser diferente.
Bia, sua avó Luzinete e sua tia Anjinha nos explicaram mais cedo que uma dessas árvores, o murici, só nasce sozinho, que ninguém consegue plantar, nem da semente, nem da galha. “Deve ser a terra, não sei. Mas se você for pro meio do mato, você encontra uns pés, que ninguém plantou, nasceu sozinho”, explica Anjinha. Não adianta, por mais que se tente, não vinga.
Ninguém vive só
Quando chegamos no terreiro de Dona Luzinete, ela e Anjinha falavam por ligação de vídeo com um familiar, que morava em São Paulo, enquanto separavam frutos do murici em uma bacia e os colocavam para secar num tabuleiro, atrás delas. Depois dessa etapa, o murici vai virar picolé e suco, com gosto marcante. “Murici é assim, ou você ama, ou odeia”, foi a frase repetida algumas vezes naquele dia.
Anjinha nos contou que “não tinha luz elétrica até os meus dez anos. Apesar de todas as torres elétricas já existirem no alto, passando no território (aponta para a serra). Era só luz de vela, mas era muito bom. Não tinha telefone, só dois, lá na prefeitura. Fazia uma fila e você tinha que ficar esperando a sua vez de ligar. E hoje olha só como é, a gente fala a qualquer hora com os parentes.”, completa, mostrando o celular.
“Aqui (na Aldeia Agreste) é todo mundo meus filhos, netos e bisnetos. Nós subimos pra cá pras crianças irem pra escola em Tacaratu, porque elas iam de pé. Então viemos ficar mais perto.”, relembra Dona Luzinete. “Antes aqui em volta tudo era roça de macaxeira, de batata doce. A gente cuidava e as crianças brincava de se esconder debaixo da lua. Aí fomos comprando, comprando (terras), sem se desfazer das de debaixo. Meu marido antes de morrer me fez prometer que eu nunca ia vender nenhuma. Eu peço a mesma coisa aos meus filhos.”
Resgatando a tradição
Lane também é filha de Dona Luzinete. Antes da apresentação e escutatória da histórias começar, ela confidenciou que “os mais velhos eram estranhos. Muitas histórias se perderam, pois eles não passaram pra frente, não queriam nos contar, eles não contavam. Muita coisa se perdeu no caminho…Mas agora os mais jovens estão buscando as histórias, a cerâmica, o coco, o pífano. A nossa história”.
A história indígena no Brasil e na América Latina foi atravessada pelo apagamento sistemático de suas culturas e tradições. Não é de se espantar essa relutância em repassar suas histórias aos mais jovens: era uma forma de sobrevivência diante das violências enfrentadas simplesmente por “serem índios”. Sintomas da colonização que, mesmo em 2024, segue tentando silenciar a tradição.
Na plateia que se formou para assistir a contação de histórias que faz parte do projeto A Lenda na Cena, e que antecede a escuta das histórias, das cerca de 40 pessoas presentes, mais da metade eram crianças e jovens. A presença delas parece confirmar a fala de Dona Lane. Ouviram e riram das histórias trazidas pela Tropa. Em seguida, se juntaram em rodas para contar histórias ao nosso grupo, serem ouvidas por nós e por elas mesmas. Jovens e crianças, contando histórias da tradição, de lendas, histórias que lhes foram contadas. São elas dando continuidade à própria tradição.
Otto, filho de Bia, sentou-se em uma roda que se formou ao redor de Yan Vinícius, integrante da Tropa, com cerca de 10 crianças. De ouvidos atentos, acompanhava as lendas que os presentes compartilhavam. Em certo momento, me confidenciou, como quem acaba de descobrir a coisa mais importante do mundo: “eu descobri que essa história da mulher que ela contou (uma das garotas na roda) é a parte um da história que minha mãe contou, aquela do cachorro de olho vermelho. Descobri que uma história acaba e sempre começa na outra”. Ainda diante do encantamento e sabedoria que só é permitido ter aos onze anos de idade, Otto comentou ao fim de uma história: “isso nenhum cientista explica”.
Andar como quem flutua
Antes e durante a escuta das histórias, a Tropa do Balacobaco cantou e tocou algumas canções marcantes do samba de coco de Arcoverde. Encantada, Lane contou que a primeira vez que viu um grupo de coco foi fora de seu território. “A primeira vez que eu vi o samba de coco foi no povoado de Santa Brígida. Eu achei a coisa mais linda, o povo dançava bonito, batia o pé rápido e parecia que estava flutuando.”
Pouco depois, em uma das rodas que se formaram espontaneamente para a escuta, uma das meninas contou uma história de malassombro: uma mulher vestida de branco que aparecia perto da meia-noite e parecia que flutuava pela estrada.
Essa então, me pareceu ser uma das infinitas respostas para o que é ser indígena: andar na terra como quem flutua, tocando o céu, sem tirar os pés do chão.