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O realismo mágico do sertão

 

Chegar a São José do Belmonte é como entrar em um reino de encantarias.  Distante 470 km de Recife, a cidade é palco de lendas e histórias cheias de mistérios. A história da Pedra do Reino é o grande atrativo da região e recebe turistas e pesquisadores durante todo o ano, em busca dessas narrativas.

 

Na Serra do Catolé, zona rural de Belmonte, está localizada a Pedra Bonita, que mais tarde ficaria conhecida com Pedra do Reino, palco de um dos episódios mais impactantes da história do Brasil - e ainda assim, pouco conhecido fora da região: o Massacre da Pedra do Reino, que mancharia a história do sertão pernambucano de sangue.

 

“Aqui aconteceu um massacre, não foi lenda não. Eu vi o cartaz de vocês, ‘A Lenda na Cena’, mas aqui não aconteceu uma lenda. Aqui foi um fato real. Aqui mataram pessoas, e não foi porque alguém chegou e matou.  Eles mesmo fizeram isso porque acreditavam no retorno de Dom Sebastião”, conta Zoraide Moura, da Associação Cultural da Pedra do Reino.

 

O movimento messiânico ocorrido ali entre 1936 e 1938 acreditava no aparecimento do Reino Encantado de Dom Sebastião. Segundo a lenda portuguesa, o rei, morto em batalha contra os mouros, retornaria para restaurar a soberania do Império Lusitano e livrar o seu povo da miséria. O sebastianismo, como ficou conhecido esse movimento, aconteceu em Portugal e em alguns locais do Brasil, além de Belmonte. Ali, para que Dom Sebastião “desencantasse”, ou seja, voltasse à vida, era preciso cobrir as Pedras de sangue. Quem entregasse seu sangue, seria recompensado: os mais velhos ressuscitariam jovens; os negros  voltariam brancos e todos, além de ricos, seriam imortais na nova vida. Diante dessas promessas de fé, o massacre da Pedra do Reino, fez  53 vítimas; dentre essas, 20 crianças, além de 14 cães que morreram em sacrifício, entre os dias 14 e 16 de maio de 1838. 

 

Se no resto do Brasil, a dúvida machadiana permanece no imaginário, (Capitu, traiu ou não traiu Bentinho?), em São José do Belmonte, a dúvida quanto à veracidade dos fatos ocorridos ali é uma questão controversa para os moradores. “É literatura. Se você criar uma história bem contada dessa pedra (aponta para uma pedra pequena no chão à nossa frente), vira lenda.” refuta Zete, filha de Seu Luquinhas, um dos moradores dos arredores da Pedra do Reino. “É lenda, é história”, assinala.

 

A família de Seu Luquinhas mora no Reino, como é chamado o povoado ao redor da Pedra, com outras três famílias, todas compostas por seus filhos, filhas e parentes. De acordo com ele, eles não têm responsabilidades legais de zelo pelo espaço. “A gente só tem que ter cuidado e prestar atenção pra mor do povo não esbagaçar as coisas”, conta Seu Luquinhas.

 

Fé cega, faca amolada

 

Os movimentos messiânicos estão presentes na formação do Brasil, principalmente no fim do século XIX e começo do século XX. São manifestações religiosas e de insatisfação social marcadas nas entranhas do país, que diante de tantas mazelas e descasos, passa a ser conduzido pela fé e pelas palavras de profetas. O vácuo de presença das autoridades católicas, devido à distância dos grandes centros, é cenário fértil para dar origem a uma religiosidade espontânea no meio do povo, um misticismo rico em manifestações, mas pouco afeito ao controle e aos rituais da Igreja oficial. Histórias próximas como as protagonizadas por Padre Cícero no Juazeiro (Ceará) e Antônio Conselheiro em Canudos (Bahia) ou distantes como a Revolta dos Muckers no Rio Grande do Sul,  traduzem a inconformidade com a situação política vigente e uma expectativa de salvação, ainda que miraculosa, com capacidade de mudar a ordem das coisas e trazer paz, justiça e felicidade. 

 

O espaço Ilumiara¹ Pedra do Reino, tal como é hoje,  foi idealizado pelo escritor Ariano Suassuna, quando era secretário de cultura do estado de Pernambuco, entre os anos de 1994 e 1998. No local, foram instaladas 16 esculturas de personagens do episódio sebastianista, do romance de Suassuna e de santos em torno das duas pedras gigantes que medem respectivamente 30 e 33 metros de altura. 

 

Foi lá, na frente da nova sede da Associação Cultural Pedra do Reino, que a Tropa contou suas histórias, antes de ouvir as lendas locais. Além dos moradores e moradoras, mães e professoras da escola rural estavam presentes e compartilharam suas histórias diante da fina chuva que banhava as pedras.

 

O Sertão: origens da nação brasileira

 

O Movimento Armorial, fundado por Ariano Suassuna, culminou em um outro grande monumento em Belmonte: o Castelo Armorial, às margens da BR-361, que corta o município. Tudo foi milimetricamente pensado e fundamentado na literatura. O Castelo foi construído entre os anos de 2007 e 2017 pelo empresário Clécio Novaes, amigo pessoal de Suassuna, porém ainda não foi concluído: sempre há algum detalhe a ser acrescentado por Clécio. Assim como o movimento, a obra é uma união entre o medieval, barroco, a cultura popular e o erudito. Entre várias obras de arte em barro, que retratam os personagens que ilustraram a obra ‘A Pedra do Reino e o príncipe do Vai e volta’, de Suassuna e oriundas de Tracunhaém,  o castelo guarda a primeira escultura talhada de Padre Cícero (1844 - 1934).

 

Antes da nossa visita ao Castelo, aconteceu a segunda escuta das histórias, na feira livre da cidade. Lá, diante de mulheres e homens debulhando feijão, peneirando tapioca e negociando frutas, verduras e hortaliças, a Tropa apresentou algumas lendas e em seguida, foi em busca de outras. As feiras livres são espaços onde cores e cheiros se misturam ao céu aberto, onde nos conectamos com nossa tradição e cultura. A feira em São José do Belmonte, que não é diferente, preenche a rua toda, do começo ao fim.

 

Após a dispersão do grupo, engatei uma conversa com Seu Francisco, que vendia algumas hortaliças, mas era pescador. Ele se afastou da função há cerca de 10 anos, devido a questões de saúde, mas não tinha um dia que não fosse de saudades da vida à beira do rio.  Conversamos por quase uma hora, com promessas de visitas e conversas mais longas. Após me despedir, caminhei até o fim da feira: onde acabava a rua, começava uma praça. Nela havia algumas dezenas de pessoas, ao redor de um personagem: um homem que prometia saltar por dentro de um círculo de facas. As pessoas se amontoavam ao redor, procurando o melhor ângulo para acompanhar a façanha. Tal qual o “Homem da Cobra”, figura presente no imaginário popular brasileiro,  ele fazia números de mágica, vendia patuás, fazia rezas, falava sem parar, e assim,  suspendia o tempo, segurando os espectadores antes do número mais difícil. A promessa, entretanto,  não me segurou por muito tempo, e após alguns minutos de observação, segui o meu andar.

 

No caminho de volta para o hotel, três meninas, de cerca de  7 a 10 anos, me chamaram atenção. Uma segurava o braço da outra, tentando ver algo que estava atrás do braço, onde a dona do braço não conseguia enxergar. Apertei os ouvidos e consegui ouvir a que segurava dizer em tom de mistério: “Aqui diz que você vai ter dois filhos” . A menor delas, ao lado, se agitou, “Agora é minha vez, lê o meu!”. Sorri e segui meu caminho, percebendo que São José do Belmonte é realmente o território da arte do encanto, independente do tempo e da idade.



 

¹ - ilumiara – neologismo criado por Ariano Suassuna; “altar iluminado”, literalmente – pode ser uma obra arquitetônica, escultórica, pictórica ou literária que serviria como marco identificador da cultura de um povo, para que este não esqueça quem realmente é.

 

 

Jéssika Betânia